Vivemos tempos diferentes. Existe um ativismo judiciário. Os juízes se arvoram em donos dos destinos do povo. Os julgamentos viraram verdadeiros espetáculos públicos. Todos querem aparecer na televisão como guardiães da ordem e da justiça, atiçando o sentimento de vingança e de punições rígidas. Exercer a justiça virou um fenômeno espetacular, visando agradar à opinião pública. Alguns procuram fundamentar suas posições na Bíblia, buscando o apoio da Palavra para suas próprias palavras. Sim, são tempos estranhos.
O povo de Israel viveu situação semelhante durante a primeira etapa de sua história. Os juízes eram as autoridades que tinham como missão a administração da justiça e do direito, a organização do povo e a liderança militar em casos de ameaças externas. Este período, chamado de Período dos Juízes (entre 1200 a 1030 a.C.), foi importante na elaboração das leis que garantiam a defesa do pequeno, do pobre e dos estrangeiros. Havia o perigo de um abuso do poder por parte dos juízes. Vários códigos legais estão presentes na Bíblia. O mais antigo deles, o Código da Aliança (Ex 20,22 até 23,19) guarda uma série de leis que garantiam os direitos dos pequenos frente à arrogância e a arbitrariedade dos grandes. Competia ao juiz ouvir “vossos irmãos para fazerdes justiça entre um homem e seu irmão ou o estrangeiro que mora com ele. Não façais acepção de pessoa no julgamento. Ouvireis de igual modo o pequeno e o grande.” (Dt 1,16-17).
O texto bíblico é radical quando trata da função de juiz. É exigido dos juízes imitar a soberana imparcialidade de Deus. Vários profetas insistem nesta missão nobre: a imparcialidade nos julgamentos fazendo triunfar a verdade (Is 10,2; Jr 5,28; Am 2,6; 5,7.10; Mq 3,9.11). A pregação profética busca restaurar a lei em defesa do pobre. A partir de onde os profetas buscam sustento legal para suas denúncias? Existe dentro do Código da Aliança um pequeno Decálogo. São dez instruções para o exercício da magistratura em Israel. A exemplo do decálogo mais conhecido, os Dez Mandamentos, este decálogo também se compõe de pequenas frases com formulação apodítica, ou seja, instruções diretas, começando com a partícula negativa, impedindo qualquer casuística.
Eis o Decálogo da Justiça:
- Não espalharás notícias falsas (Ex 23,1a).
- Não darás a mão ao ímpio para seres testemunha de injustiça (Ex 23,1b).
- Não tomarás o partido da maioria para fazeres o mal (Ex 23,2a).
- Não deporás num processo inclinando-te para a maioria, para torcer o direito (Ex 23,2b).
- Não serás parcial com o desvalido em seu processo (Ex 23,3).
- Não desviarás o direito do pobre no processo a ti dirigido (Ex 23,6).
- Da falsa acusação te afastarás (Ex 23,7a).
- Não matarás o inocente e o justo e não justificarás o culpado (Ex 23,7b).
- Não aceitarás suborno, porque os presentes cegam até as testemunhas oculares e pervertem as palavras dos justos (Ex 23,8; Dt 16,19b).
- Não oprimirás o estrangeiro: sabes como é a vida de um estranho porque fostes estrangeiros no Egito (Ex 23,9).
O Decálogo está direcionado aos juízes. Exige que eles se atenham à verdade. O objetivo de qualquer julgamento é a busca da verdade. Desta forma não pode firmar seus veredictos em cima de notícias falsas, nem sentir-se pressionado pela turba sedenta de vingança e de sangue. Da mesma forma as testemunhas não podem se sentir ameaçadas pela multidão. Julgar não é seguir a maioria. A maioria pode gerar poder político, mas não sabedoria jurídica. Como no julgamento de Jesus, a multidão muitas vezes erra. Os mandamentos tem especial preocupação com o fraco, o pobre e o estrangeiro. São as exigências do Direito do Pobre (Ex 22,20-23). O próprio Deus é o advogado do pobre, da viúva, do órfão e do estrangeiro. O 9º mandamento do Decálogo é bem explícito: o suborno cega qualquer testemunha ocular.
Evidentemente, em Israel a lei civil não pode ser separada da lei religiosa. Os profetas, em nome de Deus, pedem justiça aos juízes que estão desrespeitando as normas legais. Um exemplo concreto é o julgamento de Nabot de Jezrael (cf. 1Rs 21). O rei quer comprar as terras de Nabot. Mas Nabot, invocando a lei, diz estar impedido de alienar as terras familiares. Abusando de seu poder, a casa real pressiona o tribunal de Jezrael para que condene Nabot. Os anciãos e os notáveis da aldeia convocam Nabot ao tribunal. A partir de duas falsas testemunhas, acusam Nabot de ter amaldiçoado a Deus e ao rei. Tal crime merece a morte (cf. Ex 22,27; Lv 24,14). Em casos de pena capital a sentença é imediatamente executada pelas testemunhas presentes. Nabot então é “levado para fora da cidade, é apedrejado e morto” (1Rs 21,13). Tal injustiça clama aos céus. Na reparação da injustiça cometida contra Nabot, o profeta Elias não se dirige ao tribunal de Jezrael. Ele vai diretamente à instância máxima que permitiu tal injustiça: o rei Acabe. Sabendo que os bens de um condenado por blasfêmia revertiam para o rei, Elias acusa o rei de “assassino e, pior ainda, de ladrão” (1Rs 21,19). Foi a ambição de Acabe que levou o tribunal de Jezrael a condenar um inocente. As instruções do Decálogo da Justiça visam exatamente estes tribunais de primeira instância, onde a pena é rigorosamente aplicada ao réu, negando-lhe qualquer possibilidade de recorrer da sentença.
Todos os profetas, assim como Elias, denunciam a perversão do direito pelos grandes. Acabe, querendo aumentar suas terras, deturpou o direito para executar legalmente seu adversário. Se a corrupção chegou à instância máxima, o tribunal da aldeia se sente livre para cometer qualquer injustiça. Contra estes juízes brada o profeta Miquéias: “Ouvi, pois, chefes da casa de Jacó e magistrados da casa de Israel, vós que detestais o direito e torceis o que é reto, vós que edificais Sião com sangue e Jerusalém com injustiça!” (Mq 3,9-10). Para o profeta, os juízes deveriam se mostrar incorruptíveis, seguindo o Decálogo da Justiça. Em Israel, o juiz é mais um defensor do direito (cf. Am 5,10) do que um castigador do crime. Todo juiz deve ser, antes de tudo, um árbitro justo, que não faz acepção de pessoa. Sua preocupação é fazer justiça ao justo e restabelecer a equidade (cf. Eclo 35,11-18) permitindo que a verdade triunfe no julgamento.